Luce
movimentou-se pesadamente para dentro de uma sala iluminada com lâmpadas
fluorescentes do Colégio Sword & Cross dez minutos depois do que deveria.
Um acompanhante com peito em formato de barril, bochechas vermelhas e uma
prancheta presa sobre bíceps de ferro já estava dando ordens – o que
significava que Luce estava atrasada.
— Então
se lembrem: são remédios, camas e vermelho — o acompanhante rosnou para um
grupo de três estudantes, todos de costas para Luce. — Se lembrem do básico e
ninguém se machuca.
Luce
escorregou rapidamente para trás do grupo. Ela ainda estava tentando descobrir
se ela tinha preenchido a gigante pilha de papel corretamente, se esse guia de
cabeça raspada parado na frente deles era um homem ou uma mulher, se havia
alguém para ajudá-la com sua enorme bolsa de tecido, se seus pais iriam se
livrar de seu amado Plymouth Fury no minuto que eles chegassem em casa, depois
que a deixaram ali.
Eles
vinham ameaçando vender o carro durante todo o verão, e agora eles tinham uma
razão que Luce não poderia argumentar contra: ninguém podia ter um carro na
nova escola de Luce. Sua nova escola reformatória para ser preciso. Ela ainda estava se acostumando com o termo.
— Você
poderia, hum, você poderia repetir isso? — Ela perguntou para o acompanhante. —
O que era, remédios...?
— Bem,
olhe o que a tempestade trouxe — o acompanhante disse em voz alta, então
continuou, enunciando devagar. — Remédios. Se você é um dos alunos medicados, é onde você deve ir para manter-se
dopada, sã, respirando, ou seja lá o que for.
Mulher, Luce decidiu, estudando a acompanhante. Nenhum homem poderia ser
malicioso o suficiente para dizer tudo isso nesse tom de voz zombador.
— Saquei
— Luce sentiu seu estômago agitar-se — remédios.
Ela
tinha se desligado dos remédios por anos agora. Depois do acidente no verão
passado, Dr. Sanford, seu especialista em Hopkinton – e a razão de seus pais a
mandarem para internatos lá em New Hampshire – havia considerado medicá-la mais
uma vez. Embora ela o tenha convencido de sua quase-estabilidade, isso a fez
ter um mês extra de análise da parte dela, só para ficar longe daqueles
terríveis antipsicóticos.
Este era
o motivo pelo qual ela estava se registrando em seu último ano no Colégio Sword
& Cross um mês depois das aulas começarem. Ser aluno novo já era ruim o
suficiente, e Luce estava nervosa o suficiente para entrar em turmas onde todos
já estavam fixados. Mas pelo que parecia depois de sua excursão, ela não era a
única novata chegando aquele dia.
Ela deu
uma olhadinha furtiva para os outros três alunos em meio círculo em volta dela.
Em sua última escola, Dover Prep, na excursão pelo campus foi onde ela achou
sua melhor amiga, Callie. Em um campus onde todos os outros estudantes foram
praticamente desmamados juntos, isso havia sido o suficiente que Luce e Callie
fossem as duas únicas crianças sem legado. Mas não demorou muito para elas
perceberem que tinham a mesma obsessão pelos mesmos filmes antigos – especialmente
os relacionados com Albert Finney. Após a descoberta delas no primeiro ano
enquanto assistiam Two for the Road que elas não podiam fazer um saco de pipoca sem ativar o alarme de
incêndio, Callie e Luce nunca mais se separaram. Até... Até que elas tiveram
que se separar.
Do lado
de Luce hoje havia dois caras e uma garota. A garota era bem fácil de se
enturmar, loira e com a beleza de comercial de cosméticos, com unhas bem feitas
na cor rosa-pastel que combinava com sua pasta de plástico.
— Eu sou
Gabbe — ela falou lentamente, lançando a Luce um grande sorriso que desapareceu
tão rápido quanto surgiu, depois que Luce não disse seu próprio nome.
O
desinteresse da menina lembrou-lhe mais uma versão sulista das meninas da Dover
do que alguém que ela esperava na Sword & Cross. Luce não conseguia se
decidir se isso era reconfortante ou não, ainda mais imaginar o que uma menina
como aquela fazia numa escola reformatória.
À
direita de Luce havia um garoto com cabelo castanho curto, olhos castanhos e
sardas em volta do nariz. Mas o jeito que ele não olhava nos olhos dela,
escolhendo cutucar a cutícula de seu polegar, deu a ela a impressão de que ele
provavelmente estava atordoado e com vergonha de encontrar-se aqui.
O garoto
à sua esquerda, por outro lado, preenchia a imagem da Luce deste lugar um pouco
perto perfeitamente demais. Ele era alto e magro, com uma bolsa de DJ a
tiracolo, cabelo preto desgrenhado, e grandes e profundos olhos verdes. Seus
lábios eram carnudos e de um rosa natural que muitas garotas matariam para ter.
Na parte detrás de seu pescoço uma tatuagem preta com formato de raios de sol
parecia quase brilhar em sua pele clara, levantando-se a partir da borda de sua
camiseta preta.
Diferente
dos outros dois, quando esse cara se virou para encontrar seu olhar, ele o
segurou e não deixou soltar. Sua boca foi definida em uma linha reta, mas seus
olhos eram quentes e vivos. Ele a contemplava, de pé como uma escultura, que
fez Luce se sentir enraizada em seu lugar também. Aqueles olhos eram intensos e
sedutores, e bem, um pouco desarmantes.
Com um
pigarro alto na garganta, a acompanhante interrompeu o transe. Luce corou e
fingiu estar muito ocupada coçando a cabeça.
—
Aqueles que entenderam o funcionamento estão livres para sair depois que
deixarem aqui seus pertences de risco — a acompanhante apontou para uma grande
caixa de papelão sob uma placa que dizia em grandes letras pretas MATERIAIS
PROIBIDOS. — E quando eu digo livre, Todd — ela fechou a mão para baixo
no ombro do garoto sardento, o que o fez pular. — Eu quis dizer dentro dos
limites do ginásio, para encontrar o estudante predestinado para ser seu guia.
Você — ela apontou para Luce — despeje seus pertences e fique comigo.
Quatro
dos estudantes se juntaram em volta da caixa e Luce assistiu, perplexa, como os
outros alunos começavam a esvaziar seus bolsos. A menina puxou um canivete
suíço rosa de sete centímetros. O cara de olhos verdes relutantemente sacou uma
lata de spray de tinta e um estilete. Até o infeliz Todd teve de deixar várias
caixas de fósforos e um pequeno recipiente de fluído de luz.
Luce se
sentiu quase estúpida por ela mesma não estar escondendo nada perigoso – mas
quando ela viu os outros depositarem seus celulares dentro da caixa, ela
engoliu em seco.
Inclinando-se
para ler a placa de MATERIAIS PROIBIDOS mais de perto, ela viu que celulares,
pagers e todos os dispositivos de rádios bidirecionais estavam estritamente
proibidos. Já era ruim o suficiente que ela não poderia ter o seu carro! Luce
fechou a mão suada em torno do celular em seu bolso, sua única ligação com o
mundo exterior. Quando a acompanhante viu a expressão em seu rosto, Luce
recebeu pequenos tapinhas na bochecha.
— Não
desmaie comigo, querida. Eles não me pagam o suficiente para fazer
ressucitação. Além disso, você tem direito a uma ligação telefônica por semana
no átrio principal.
Uma
ligação? Por semana?
Mas...
Ela
olhou para seu telefone mais uma vez e viu que havia recebido mais duas
mensagens de texto. Não parecia possível que essas seriam suas duas últimasmensagens de texto. A primeira era de
Callie.
Me liga
imediatamente! Estarei esperando ao lado do telefone a noite toda, então,
esteja pronta. E se lembre do mantra que eu te ensinei: Você vai sobreviver! De
qualquer forma, se isso importar, eu acho que todo mundo esqueceu sobre...
Do jeito
típico de Callie, ela havia ido tão longe que o celular de Luce cortou quatro
linhas da mensagem. De qualquer forma, Luce estava aliviada. Ela não queria ler
sobre como todos em sua antiga escola haviam finalmente esquecido o que havia
acontecido com ela. O que a fez vir parar nesse lugar.
Ela
suspirou e abriu sua segunda mensagem. Era de sua mãe, que só havia aprendido a
enviar torpedos há algumas semanas e que certamente não sabia sobre aquela
coisa de uma-ligação-por-semana.
Querida,
nós estaremos sempre pensando em você. Seja boa e tente comer proteína o
suficiente. Nos falamos quando pudermos. Amor, M&P
Com um
suspiro, Luce percebeu que seus pais deveriam saber. O que mais poderia
explicar suas expressões elaboradas quando ela deu um tchauzinho do portão da
escola essa manhã, com sua mala em mãos? No café da manhã, ela havia tentado
fazer piada sobre finalmente perder esse terrível sotaque de New England que
ela havia adquirido na Dover, mas os seus pais não esboçaram nenhum sorriso.
Ela pensou que eles continuavam chateados com ela. Eles nunca haviam feito
completamente aquela coisa de elevar a voz, então quando Luce estragou tudo,
eles deram a ela o tratamento do silêncio. Agora ela entendia o estranho
comportamento dessa manhã: seus pais estavam de luto pela perda de contato com
sua única filha.
— Nós
estamos esperando apenas uma pessoa — a acompanhante disse. — Eu me pergunto
quem é.
A
atenção de Luce voltou para a caixa de riscos, que agora estava transbordando
de itens contrabandeados que ela não conseguia reconhecer. Ela podia sentir o
cara de cabelos negros com seus olhos verdes fixos nela. Ela olhou em volta e
viu que todo mundo estava com os olhos fixos. Sua vez. Ela fechou seus olhos e
lentamente abriu sua mão, deixando seu celular escorregar e ganhar terreno no
topo da pilha. O som de ficar completamente sozinha.
Todd e a
robótica Gabbe dirigiram-se para a porta sem nada além um olhar na direção de
Luce, mas o terceiro cara se virou para o acompanhante.
— Eu sou
capaz de informá-la — disse ele, assentindo para Luce.
— Não
faz parte do nosso acordo — a acompanhante replicou automaticamente, como se
estivesse esperando esse diálogo. — Você é um novo estudante de novo – o que
significa restrições de aluno novo. De volta para o nível um. Se você não gosta
disso, deveria ter pensado antes de quebrar a sua condicional.
O garoto
permaneceu imóvel, inexpressivo, quando a acompanhante rebocou Luce – que
endureceu com o “condicional” – até o fim de um corredor amarelo.
—
Mexa-se — ela incitou, como se nada tivesse acontecido. — Camas.
Ela apontou
para a janela oeste de um prédio de concreto cinza. Luce podia ver Gabbe e Todd
misturarem-se devagar em direção deles, com o terceiro garoto andando devagar,
como se alcançá-los fosse a última coisa em sua lista de coisas a fazer.
Os
dormitórios eram formidáveis e quadrados, um sólido prédio cinza cujas portas
duplas não davam nada sobre a possibilidade de vida dentro delas. Uma grande
placa de pedra permanecia plantada no meio do gramado morto, e Luce se lembrou
do website as palavras DORMITÓRIO PAULINE esculpidas dentro dele. Parecia mais
feio naquela manhã de sol confusa do que na plana foto preto-e-branca.
Mesmo
nessa distância, Luce podia ver o bolor negro cobrindo a frente do dormitório.
Todas as janelas estavam obstruídas por uma carreira de grossas barras de aço.
Ela entortou os olhos. O que era aquele arame farpado em torno do prédio?
A
acompanhante olhou para a lista, folheando o arquivo de Luce.
— Quarto
sessenta e três. Deixe sua bolsa em meu escritório com o resto deles por agora.
Você pode desfazer essa tarde.
Luce
arrastou sua mala vermelha rumo a outras três malas pretas sem classificação.
Então ela chegou a refletir sobre seu celular, onde ela costumava colocar as
coisas que precisava lembrar. Mas, enquanto sua mão procurava em seu bolso
vazio, ela suspirou e se comprometeu a gravar o número do quarto na memória.
Ela
ainda não entendia a razão pela qual não podia ficar com seus pais; sua casa em
Thunderbolt ficava a menos de uma hora da Sword & Cross. Ela havia se
sentido tão bem em sua casa em Savannah, onde, como sua mãe sempre dizia, até o
vento soprava preguiçosamente. O lugar mais suave da Georgia, tinha o ritmo
adequado ao jeito de Luce mais do que New England nunca teve. Mas a Sword &
Cross não era como Savannah. Era quase como um lugar qualquer, exceto pelo fato
de ser um lugar sem vida e sem cor, onde o tribunal a havia colocado hospedada.
Ela
havia escutado seu pai no telefone com o diretor outro dia, concordando em seu
jeito confuso e fala de professor de Biologia, “Sim, sim, talvez seja melhor
para ela ser supervisionada todo tempo. Não, não, nós não queremos interferir
no seu sistema.”
Claramente,
seu pai não havia visto as condições de supervisão de sua filha única. Esse
lugar parecia uma prisão de segurança máxima.
— E
sobre, como você disse... os vermelhos? — Luce perguntou para a acompanhante,
pronta para ser liberada da excursão.
—
Vermelhos — a acompanhante repetiu, apontando para um pequeno fio do teto:
lentes com uma luz piscante vermelha.
Luce não
havia visto isso antes, mas assim que a acompanhante apontou a primeira, ela
pode notar que estavam em todo lugar.
—
Câmeras?
— Muito
bem — a acompanhante falou, a voz gotejando condescendência. — Nós a deixamos
evidentes a fim de lembrá-los. Todo tempo, a todo momento, nós a observamos.
Então, não estrague... quer dizer, se você puder evitar.
Todo o
tempo, todos falavam com Luce como se ela fosse uma completa psicopata, e ela
estava bem perto de acreditar que isso era uma verdade.
Por todo
o verão, as memórias a vinham assustando, em seus sonhos e nos raros momentos
em que seus pais a deixavam sozinha. Alguma coisa havia acontecido no chalé, e todo mundo (incluindo Luce) estava morrendo
para saber exatamente o quê. A polícia, o juiz, o assistente social, haviam
todos tentado forçar a verdade dela, mas ela não sabia nada tanto quanto eles.
Ela e Trevor haviam brincado a tarde inteira, perseguindo um ao outro pela
fileira de chalés em volta do lago, longe do resto da festa. Ela tentou
explicar que essa havia sido a melhor noite de sua vida, até se tornar a pior.
Ela
gastou muito tempo repassando aquela noite em sua mente, ouvindo a risada de
Trevor, sentindo suas mãos em volta de sua cintura, e tentar conciliar seus
instintos de que ela era realmente inocente.
Mas
agora, cada regra e regulamento da Sword & Cross parecia trabalhar contra
esse pensamento, parecia sugerir que ela era, de fato, perigosa e precisava ser
controlada. Luce sentiu uma mão firme em seu ombro.
— Olha —
a acompanhante disse — se isso a faz se sentir melhor, você está longe de ser o
pior caso aqui.
Foi o
primeiro gesto humano que ela demonstrou a Luce, o que a fez acreditar que ela
queria fazê-la se sentir melhor. Mas... Ela havia sido mandada para cá por
causa da suspeita morte do cara por quem ela era louca, e ela estava “longe
de ser o pior caso”? Luce se perguntou com o que exatamente eles lidavam na
Sword & Cross.
— Ok. A
orientação terminou. Você está por sua conta agora. Aqui está um mapa se você
precisar encontrar algo a mais. — Ela deu a Luce uma cópia de um bruto mapa
desenhado à mão, então olhou para seu relógio. — Você tem uma hora até sua
primeira aula, mas as minhas novelas começam as cinco, então... — ela balançou
sua mão para Luce — Mantenha-se direita. E não se esqueça — ela disse,
apontando para as câmeras mais uma vez — Os vermelhos estão de olho em você.
Antes
que Luce pudesse responder, uma garota magra, de cabelos negros apareceu à sua
frente, abanando seus dedos longos na face de Luce.
— Ooooh
— a garota zombou com uma voz fantasmagórica, dançando em volta de Luce em
círculos. — Os vermelhos estão de olho em vocêêêê.
— Sai
daqui, Ariane, antes que eu tenha que lobotomizá-la — a acompanhante disse,
embora fosse claro por seu breve, mas genuíno, sorriso que ela possuía alguma
bruta afeição pela garota louca.
E estava
claro que Ariane não era recíproca ao amor. Ela fez um gesto obsceno para a
acompanhante, então parou na frente de Luce, a enfrentando para que ficasse
ofendida.
— E só
por isso — a acompanhante disse, anotando furiosamente em seu caderninho — você
ganhou a tarefa de mostrar tudo em volta para a pequena Miss Sunshine hoje.
Ela
apontou para Luce, que parecia qualquer coisa, menos ensolarada, com seus jeans
pretos, botas pretas e top preto. Na seção do “código de vestimenta”, o website
da Sword & Cross falava alegremente que enquanto os alunos tivessem bom
comportamento, eles estavam livres para vestir o que quisessem, porém, com duas
condições: o estilo deve ser modesto e as roupas deviam ser pretas. Muita
liberdade.
A blusa
de gola tartaruga que sua mãe a havia forçado a usar não fazia nada pelas suas curvas, e
até sua melhor forma havia sumido: seu grosso cabelo preto, que costumava cair
sobre sua cintura, havia sido completamente destruído. O fogo do chalé havia
queimado seu couro cabeludo e deixado seu cabelo desigual, então depois da
longa, silenciosa viagem de Dover para casa, sua mãe a colocara na banheira,
trouxe o barbeador elétrico do pai e sem nenhuma palavra raspou sua cabeça.
Durante o verão, seu cabelo havia crescido um pouco, apenas o suficiente para
que suas ondas, outrora invejáveis, agora pairassem logo abaixo de suas
orelhas.
Ariane a
avaliou, dando um tapa com um dedo contra seus finos lábios pálidos.
—
Perfeito — ela disse, dando um passo a frente para colocar seus braços em volta
de Luce. — Eu estava realmente pensando que eu poderia usar uma nova escrava.
A porta
do salão abriu e entrou o menino de olhos verdes. Ele balançou a cabeça e disse
para Luce:
— Esse
lugar não liga de te despir para fazer uma revista. Então, se você está
guardando qualquer outro risco — ele ergueu uma sobrancelha e um punhado de objetos desconhecidos da
caixa — salve-se dos perigos.
Atrás de
Luce, Ariane prendia o riso. O cara virou a cabeça e quando seus olhos
registraram Ariane, ele abriu sua boca e a fechou novamente, como se não tivesse
certeza do que fazer.
— Ariane
— ele falou uniformemente.
— Cam —
ela replicou.
— Você o
conhece? — Luce sussurrou, se perguntando se havia o mesmo tipo de facções em
escolas reformatórias como haviam na Dover.
— Não me
lembre — Ariane disse, arrastando Luce para fora da porta, dentro da cinza e
alagada manhã.
Os
fundos do prédio principal davam em uma calçada lascada, em volta de um campo
bagunçado. A grama estava tão comprida que parecia mais um terreno baldio que
uma área pública de uma escola, mas um desbotado placar e arquibancadas de
madeira provavam o contrário.
Por trás
do contorno do lugar, havia quatro prédios de aparência severa: o dormitório
longe à direita; uma gigante, feia e velha igreja à extrema esquerda e outras
duas grandes estruturas no meio deles, que Luce imaginou serem as salas de
aula.
Era
isso. Seu mundo inteiro estava reduzido àquela triste visão de seus olhos.
Ariane
imediatamente desviou do caminho direito e levou Luce ao campo, sentando no
alto de uma das arquibancadas de madeira molhadas.
A
estrutura correspondente em Dover gritava Atleta da Ivy League em formação, então Luce sempre havia evitado ficar lá. Mas esse campo vazio, com
essas enferrujados, deformados traves, contava uma história completamente
diferente. Uma que não foi fácil para Luce descobrir. Três urubus turcos
passaram acima de sua cabeça, e um vento triste chicoteou sobre os galhos nus
dos carvalhos. Luce estremeceu e abaixou seu queixo para dentro da gola de
tartaruga.
— Então
— Ariane começou — agora você conheceu Randy.
— Eu
pensei que fosse Cam.
— Eu não
estou falando dele — Ariane disse rapidamente — a mulher-macho daqui. — Ariane
virou a cabeça para o escritório onde elas haviam deixado a acompanhante vendo
TV. — Que que 'cê acha? Homem ou mulher?
— Hm...
Mulher? — Luce tentou. — Isso é um teste?
Ariane
esboçou um sorriso.
— O
primeiro de muitos. E você passou. Pelo menos, eu acho que você passou. O
gênero da maioria do corpo docente daqui é um debate escolar em curso. Não se
preocupe, você vai entrar nele.
Luce
achou que Ariane estava fazendo uma piada – nesse caso, legal. Mas isso tudo
era como uma enorme mudança da Dover. Em sua antiga escola, as
gravatas-verdes-esgotantes, os engomados futuros senadores praticamente
escorriam pelos corredores, no requintado silêncio que o dinheiro parecia
passar acima de tudo.
Mais do
que nunca, o pessoal da Dover lançava a Luce olhares tortos de
não-suje-as-paredes-brancas-com-suas-impressões. Ela tentou imaginar Ariane lá:
se espreguiçando nas arquibancadas, fazendo uma alta, bruta piada com sua voz
mordaz. Luce tentou imaginar o que Callie pensaria de Ariane. Nunca havia
ninguém como ela na Dover.
— Okay,
desembucha — Ariane ordenou.
Pulando
da arquibancada mais alta e apontando para que Luce se juntasse a ela
— O que
cê fez para entrar aqui?
O seu
tom de voz era brincalhão, mas de repente Luce teve que se sentar. Era
ridículo, mas ela meio que esperava passar por seu primeiro dia de aula sem seu
passado vindo a mente, roubando sua fina fachada de calma. É claro que as
pessoas aqui vão querer saber.
Ela pôde
sentir o sangue arranhar suas têmporas. Acontecia sempre que ela tentava pensar
voltar – realmente voltar – àquela noite. Ela nunca parou de se sentir culpada
com o que havia acontecido a Trevor, mas ela também tentava duramente não ficar
atolada nas sombras que, por agora, eram a única coisa que ela se lembrava do
acidente. Aquela escuridão, as coisas indefinidas que ela nunca poderia contar
para ninguém.
Risque
isso – ela começou a contar a Trevor a presença peculiar que sentiu naquela noite, sobre as
curvas retorcidas sobre suas cabeças, tentando assombrar sua noite perfeita. É
claro, então já era tarde demais. Trevor se foi, seu corpo queimado e
irreconhecível, e Luce era... Ela era... Culpada?
Ninguém
sabia sobre as tenebrosas formas que ela havia visto no escuro. Elas sempre
vinham para ela. Elas iam e vinham há tanto tempo que Luce não conseguia se
lembrar a primeira vez que as vira. Mas ela se lembrava da primeira vez que ela
percebeu que as sombras não vinham para todos – ou na verdade, para ninguém além dela. Quando ela tinha sete anos, sua família estava de férias em
Hilton Head e seus pais a levaram em uma passeio de barco. Estava perto do
pôr-do-sol quando as sombras começaram a ondular sobre a água, e ela se virou
para seu pai e disse “O que você faz quando elas aparecem, pai? Porque você não
se assusta com os monstros?”
Não
haviam monstros, seus pais a asseguraram, mas Luce repetia insistentemente a
presença de alguma coisa oscilante e negra que a levou a várias consultas com o oftalmologista da
família, e depois óculos, e depois consultas com o médico de ouvido depois dela
fazer uma errônea descrição do som rouco de vento soprando forte que as sombras
faziam algumas vezes – e depois, terapia, e depois, mais terapia, e finalmente
a prescrição de remédios antipsicóticos. Mas nada os fazia ir embora.
Quando
ela fez catorze, Luce se recusou a tomar seus remédios. Foi quando eles
encontraram o Dr. Sanford e a Dover School perto. Eles voaram para New
Hampshire, e seu pai dirigiu seu carro alugado por uma rodovia longa e sinuosa
para a mansão no topo da colina chamada Shady Hollows. Eles colocaram Luce de
frente para um homem de jaleco e a perguntaram se ela continuava tendo suas “visões”.
A palma das mãos de seus pais estavam suando, enquanto eles agarravam as mãos,
sobrancelhas franzidas com o medo de que houvesse algo terrivelmente errado com
sua filha.
Ninguém
veio e disse que se ela dissesse para o Dr. Sanford o que eles queriam que ela
dissesse, ela provavelmente estaria vendo muito mais da Shady Hollows. Quando
ela mentia e agia normalmente, ela estava permitida a frequentar a Dover e só
tinha que visitá-lo uma vez ao mês.
Luce
tinha sido permitida de parar de tomar as horríveis pílulas assim que começou a
fingir que não via mais as sombras. Mas ela continuava sem ter controle sobre
elas quando apareciam.
Tudo o
que ela sabia era que o catálogo mental dos lugares que eles apareceram para
ela no passado – florestas densas, águas turvas – se tornaram os lugares que
ela evitava a todo custo.
Tudo o
que ela sabia era que quando as sombras vinham, elas estavam acompanhadas de um
calafrio gelado sobre sua pele, um repugnante sentimento diferente de qualquer
outra coisa.
Luce
sentou de pernas abertas em uma das arquibancadas e segurou suas têmporas entre
seus polegares e dedos médios. Se ela queria fazer aquilo completamente hoje,
ela tinha que colocar seu passado em recesso na sua mente. Ela não conseguia
sondar sua memória daquela noite por ela mesma, então não havia nenhum jeito
dela arejar todos os detalhes horríveis para algum esquisito, maníaco estranho.
Em vez
de responder, ela observou Ariane, que estava deitada de costas para as
arquibancadas, um par de enormes óculos escuros esportivos cobrindo o melhor da
sua face. Era difícil afirmar, mas ela estava olhando para Luce, também,
porque, depois de um segundo, ela se levantou das arquibancadas e sorriu.
— Corte
meu cabelo como o seu.
— O quê?
— Luce engasgou. — Seu cabelo é lindo.
Era
verdade: Ariane tinha um longo, pesado cabelo, que Luce tinha perdido
desesperadamente. Seus cachos negros soltos brilhavam na luz do sol, ganhando
um tom avermelhado. Luce enfiou seu cabelo atrás das orelhas, mesmo que ele
ainda não fosse longo o bastante para fazer qualquer coisa exceto bater de
volta na frente deles.
— Linda
porcaria — Ariane disse. — O seu é sexy, moderno. E eu quero ele.
— Oh,
um, okay.
Seria
isso um elogio? Ela não sabia se deveria estar lisonjeada ou enervada com o
jeito que Ariane assumiu que poderia ter o que desejasse, até quando isso
pertencia a outra pessoa.
— Onde
nós vamos conseguir...
— Tcharã
— Ariane abriu sua bolsa e tirou de lá o canivete suíço rosa que Gabbe havia
deixado na caixa de perigos. — Que foi? — ela disse, vendo a reação de Luce. —
Eu sempre mantenho meu dedo pegajoso no dia que os novos estudantes tem que se
livrar dessas coisas. A ideia sozinha me veio em meus dias de cão no
entretenimento da Sword & Cross... Hm... Acampamento de verão.
— Você
passa o verão inteiro... Aqui? — Luce estremeceu.
— Há!
Falando como uma verdadeira novata! Você provavelmente está esperando umas
férias de primavera. — Ela atirou para Luce o canivete suíço. — Nós não vamos
deixar esse inferno. Nunca. Agora corte.
— E as
câmeras? — Luce perguntou, olhando em volta, com o canivete em mãos.
Haveria
câmeras em algum lugar aqui.
Ariane
sacudiu a cabeça.
— Me
recuso a me associar com maricas. Você pode lidar com isso ou não?
Luce
assentiu.
— E não
me diga que você nunca cortou um cabelo antes. — Ariane agarrou o canivete
suíço por trás de Luce, puxou a ferramenta de tesoura e entregou-o de volta. —
Nenhuma outra palavra até você me dizer o quão fantástica fiquei.
No
“salão” da banheira de seus pais, a mãe de Luce havia puxado os restos de seu
longo cabelo em um bagunçado rabo de cavalo, antes de jogar tudo aquilo fora.
Luce estava certa de que havia um método mais estratégico de cortar cabelos,
mas como alguém que evitara cortes de cabelo durante toda a vida, a técnica do rabo
de cavalo era a única que conhecia. Ela recolheu o cabelo de Ariane em suas
mãos, pegou o elástico que estava em volta de seu pulso, segurou a pequena
tesoura firmemente e começou a cortar.
O rabo
de cavalo caiu nos pés dela e Ariane sobressaltou-se e apanhou subitamente. Ela
o pegou e segurou na direção do sol. O coração de Luce se comprimiu com a
visão. Ela estava agonizando pelo seu próprio cabelo perdido, e todas as outras
perdas que isso simbolizava. Mas Ariane só deixou um delicado sorriso espalhar
pelos seus lábios. Ela correu os dedos pelo rabo de cavalo, e depois o jogou
dentro da bolsa.
—
Maravilhoso — ela disse. — Continue.
— Ariane
— Luce sussurrou, antes que pudesse parar a si mesma. — Seu pescoço. Está
todo...
— Cheio
de cicatrizes? Você pode dizer isso.
A pele
do pescoço de Ariane, desde a parte de trás de sua orelha direita até seu colar
de ossos estava com reentrâncias, marmorizadas e brilhantes. A mente de Luce
foi até Trevor – para aquelas horríveis imagens. Até seus próprios pais não a
olharam depois do viram. Ela estava tendo um mal momento olhando para Ariane
agora.
Ariane
agarrou a mão de Luce e pressionou contra sua pele. Era quente e frio, ao mesmo
tempo. Era liso e áspero.
— Eu não
tenho medo disso — Ariane disse. — Você tem?
— Não —
Luce respondeu, enquanto ela desejava que Ariane tirasse sua mão, então Luce
poderia tirar a dela também. Seu estômago se contorceu quando ela se questionou
se a pele de Trevor seria assim.
— Você
tem medo do que realmente é, Luce?
— Não —
Luce disse outra vez, rapidamente.
Deveria
ser óbvio que ela estava mentindo. Ela fechou os olhos. Tudo que ela desejava
da Sword & Cross era um novo começo, um lugar onde as pessoas não olhariam
para ela como Ariane estava olhando agora. No portão da escola essa manhã,
quando seu pai sussurrou o lema da família em seu ouvido – “Prices nunca
quebram” – parecia possível, mas agora Luce sentia-se decaída e exposta. Ela
tirou sua mão.
— Então,
como isso aconteceu? — ela perguntou, olhando para baixo.
— Se
lembra que eu não te pressionei sobre o que você fez para estar aqui? — Ariane
perguntou, erguendo suas sobrancelhas.
Luce
assentiu.
Ariane
gesticulou para as tesouras.
— Arrume
a parte de trás, ok? Talvez isso me faça parecer realmente bonita. Talvez me
faça parecer com você.
Mesmo
com o mesmo corte, Ariane permaneceria como uma versão subnutrida de Luce.
Enquanto
Luce estava ocupada com seu primeiro corte de cabelo, Ariane explanava as
complexidades da vida na Sword & Cross.
— Esse
bloco de celas ali é Augustine. É lá onde nós temos nossos tão falados eventos
sociais nas noites de quarta-feira. E todas as nossas aulas.
Ela
apontou para a construção com cor de dente amarelado, dois prédios à direita do
dormitório. Parecia que havia sido desenhado pelo mesmo sádico que desenhara o
Pauline. Era tristemente quadrado, tristemente parecido com uma fortaleza,
cercado pelo mesmo arame farpado e janelas com grades. Uma névoa cinza fazia as
paredes parecerem camufladas por musgos, tornando impossível de ver se alguém
estava lá.
— Aviso
claro — Ariane continuou — você vai odiar as aulas aqui. Você não é humana se
não odiar.
— Por
quê? O que há de tão ruim com elas? — Luce perguntou.
Talvez
Ariane apenas não gostasse de escola no geral. Com seu esmalte preto,
delineador preto e a bolsa preta que parecia grande o suficiente para caber
apenas o novo canivete suíço dela, ela não parecia exatamente estudiosa.
— Aqui
você vai ver o ginásio de ponta — ela disse, assumindo um tom nasalado de guia
turístico. — Sim, sim, para os olhos inexperientes parece uma igreja. Costumava
ser. Nós temos um tipo de arquitetura de segunda mão na Sword & Cross.
Alguns anos atrás, algum maluco por exercícios físicos apareceu falando
besteira sobre como supermedicar os adolescentes arruína a sociedade. Ele doou
uma tonelada de dinheiro de merda então eles transformaram a igreja num
ginásio. Agora os poderosos podem pensar que a gente desconta nossas
“frustrações” de um jeito mais “produtivo”.
Luce
gemeu. Ela sempre detestou educação física.
— Garota
do meu coração — Ariane se condoeu — Treinador Diante é di-a-bó-li-co.
Enquanto
Luce se movimentou para acompanhar, ela reparou no resto do recinto. O complexo
da Dover havia sido bem cuidado, tudo bem feito e pontilhado em espaços
uniformes, árvores cuidadosamente podadas. Sword & Cross parecia que havia
tudo caído subitamente e abandonado no meio de um pântano. Salgueiros cujos
galhos apontavam para baixo balançavam para o chão, kudzu crescia pelo muro em
lençóis, e todo o terceiro piso escutava o barulho do respingo.
E não
era apenas a maneira que o local parecia. Cada respiração úmida de Luce
permanecia presa em seus pulmões. Apenas respirar na Sword & Cross fazia
ela se sentir como se estivesse atolando em areia movediça.
—
Aparentemente os arquitetos entraram num impasse enorme sobre como melhorar o
estilo dos prédios da antiga academia militar. O resultado é que nós acabamos
em um lugar metade penitenciária, metade zona de tortura medieval. E sem
jardineiro — Ariane disse, tirando um pouco de limo de seus coturnos. — Tosco.
Oh, e aqui está o cemitério.
Luce
seguiu Ariane apontando o dedo para a parte mais longe do lado esquerdo do
terreno, após o dormitório. Um manto ainda mais espesso de névoa pairava sobre
a porção de terra sem muros.
Era
delimitado dos três lados por uma densa floresta de carvalhos. Ela não podia
ver dentro do cemitério, que parecia quase afundar-se debaixo da superfície,
mas ela podia sentir o cheiro da podridão e ouvir o coro de cigarras zumbindo
nas árvores. Por um segundo, ela pensou que ouviu o silvo das sombras – mas ela
piscou e eles se foram.
— Isso é
um cemitério?
— Aham.
Isso costumava ser uma academia militar, caminho de volta nos dias da Guerra
Civil. Então era aqui que eles jogavam todos os seus mortos. É arrepiante como
todos caem fora. E meu sinhô — Ariane disse, acumulando um falso sotaque sulista. — Isso fede até os
céus!
Então,
ela piscou para Luce.
— Nós
ficamos lá pra caramba.
Luce
olhou para Ariane para ver se ela estava brincando. Ariane só deu de ombros.
— Okay,
foi só uma vez. E foi só depois de uma grande festa de medicamentos.
Ora,
essa era uma palavra que Luce reconhecia.
— Há!
Ariane riu. — Eu acabei de ver uma luz acender aí em cima. Então, alguém estáem casa. Bem, Luce, minha querida,
você provavelmente foi a festas de internatos, mas você nunca viu como as
crianças de reformatórios colocam tudo abaixo.
— Qual é
a diferença? — Luce perguntou, tentando esconder o fato que ela nunca foi a
nenhuma grande festa na Dover.
— Você
vai ver — Ariane parou e se virou para Luce. — Você vem essa noite e fica lá,
okay? — Ela surpreendeu Luce pegando sua mão. — Promete?
— Mas eu
pensei que você disse que eu devia manter distância dos casos perigosos — Luce
brincou.
— Regra
número dois – Não me escute! — Ariane gargalhou, balançando a cabeça. — Eu sou
com certeza louca!
Ela deu
uma corridinha e Luce foi atrás dela.
—
Espere, qual é a regra número um?
— Me
acompanha!
***
Quando
elas viraram a esquina das salas de aula de paredes de bloco de cimento, Ariane
deu uma parada.
— Pareça
legal — ela disse.
— Legal
— Luce repetiu.
Todos os
outros estudantes pareciam estar agrupados em volta das árvores estranguladas
pelo kudzu do lado de fora do Augustine. Nenhum deles parecia exatamente feliz
por estar do lado de fora, mas ninguém parecia exatamente pronto a entrar,
também.
Nunca
houve muito código de vestimenta na Dover, então Luce não estava acostumada com
a uniformidade do corpo estudantil. Então, novamente, apesar de todos ali
usarem os mesmos jeans pretos, blusas de gola alta pretas e suéteres pretos
amarrados sobre seus ombros ou em volta da cintura, continuava havendo
diferenças substanciais no jeito que eles o usavam.
Um grupo
de garotas tatuadas paradas em um círculo cruzado usavam pulseiras até seus
cotovelos. As bandanas pretas no cabelo delas lembrou a Luce um filme que ela
viu uma vez sobre gangues femininas de motocliclistas. Ela alugou porque
pensou: O que pode haver de mais legal que uma gangue de motoqueiros só de
mulheres? Agora os olhos de Luce trancaram-se em uma das garotas no gramado. O
estrabismo lateral da garota de olhos-de-gato delineados de preto fez Luce
rapidamente mudar a direção de seu olhar.
Um cara
e uma garota que estavam de mãos dadas tinham lantejoulas costuradas em formato
de ossos cruzados nas costas de seus suéteres pretos. A cada poucos segundos,
um dos dois puxava o outro pra um beijo nas têmporas, no lóbulo da orelha, nos
olhos. Quando eles envolveram seus braços em volta um do outro, Luce pode ver
que ambos usavam pulseiras de rastreamento que estavam piscando. Eles pareciam
um pouco rudes, mas estava óbvio o quanto estavam apaixonados. Toda vez que ela
via as argolas de suas línguas piscando, Luce sentia um aperto solitário
beliscando seu peito.
Atrás
dos namorados, um grupo de garotos loiros estava encostado contra a parede.
Cada um deles usava seu suéter, apesar do calor. E todos eles tinham camisas
oxford brancas por baixo, o colarinho engomado para cima. As barras remendadas
de suas calças pretas batiam na beira de seus sapatos polidos, que calçavam
perfeitamente. De todos os estudantes no perímetro, esses garotos pareciam para
Luce os mais próximos do estilo da Dover. Mas um olhar mais aproximado
rapidamente os diferenciava dos garotos que ela costumava conhecer. Os caras
como Trevor.
Apenas
estando em grupo, esses garotos radiavam um tipo especial de tenacidade. Estava
bem ali no olhar de seus olhos. Era difícil de explicar, mas isso de repente
surpreendeu Luce, que assim como ela, todos nessa escola tinham um passado.
Todos aqui provavelmente possuíam segredos que não queriam compartilhar. Mas
ela não sabia se essa descoberta a fazia se sentir mais ou menos isolada.
Ariane
percebeu os olhos de Luce rondando os outros alunos.
— Nós
todos fazemos o que podemos para sobreviver durante o dia — ela disse,
encolhendo. — Mas no caso de você não ter observado os abutres aproveitadores,
esse lugar cheira muito bem a morte.
Ela
tomou um lugar em um banco debaixo de um salgueiro e afagou o lugar perto dela
para Luce.
Luce
afastou um amontoado de folhas molhadas em decomposição, mas logo antes dela
sentar, ela notou outra violação do código de vestimenta.
Uma
violação muito atraente.
Ele
vestia uma brilhante echarpe vermelha em volta do seu pescoço. Estava longe de
estar frio lá fora, mas ele tinha uma jaqueta de couro preta de motociclista em
cima de seu suéter preto, também. Talvez fosse porque ele era o único ponto de
cor no perímetro, mas ele era tudo que Luce podia olhar. Na verdade, tudo
parecia pálido em comparação a isso. Por um longo momento, Luce se esqueceu de
quem era.
Ela
notou seu cabelo dourado profundo e bronzeado apropriado. Suas maçãs do rosto
salientes, os óculos escuros que cobriam seus olhos, a forma suave de seus
lábios. Em todos os filmes que Luce tinha visto, em todos os livros que ela
havia lido, o interesse amoroso era enlouquecedoramente bonito – exceto por
aquela única pequena falha. O dente lascado, o charmoso topete, a bela marca em
sua bochecha esquerda. Ela sabia por que – se o herói fosse imaculado demais, havia o risco dele ser inacessível.
Mas acessível ou não, Luce sempre teve um fraco pelos sublimemente bonitos.
Como esse cara.
Ele
inclinou-se contra o prédio com suas mãos cruzadas suavemente sobre seu peito.
E por um milésimo de segundo, Luce viu uma rápida imagem dela jogada nos braços
dele. Ela sacudiu a cabeça, mas a visão permanecia tão clara que ela quase
decolou em direção a ele. Não. Isso era louco. Certo? Mesmo numa escola cheia
de malucos, Luce estava certa de que aquele instinto era insano. Ela nem ao
menos o conhecia.
Ele
estava falando com um aluno de dreads e sorriso cheio de dentes. Os dois estavam rindo forte e genuinamente –
de um jeito que fez Luce se sentir estranhamente enciumada. Ela estava tentando
lembrar qual foi a última vez que ela riu, realmente, daquele jeito.
— Esse é
Daniel Grigori — Ariane falou, se inclinando e lendo sua mente. — Eu posso
dizer que ele chamou a atenção de alguma pessoa.
—
Eufemismo — Luce concordou, envergonhada quando ela percebeu como ela devia ter
parecido para Ariane.
— É bem,
se você gosta desse tipo de coisa.
— O que
tem para não gostar? — Luce perguntou, sem conseguir fazer as palavras pararem
de sair.
— O
amigo dele lá é Roland — Ariane explicou, apontando na direção do garoto negro.
— Ele é legal. O tipo de cara que pode conseguir coisas, sabe?
Não
realmente, Luce pensou, mordendo seu lábio.
— Que
tipo de coisas?
Ariane
encolheu, usando seu canivete suíço roubado para cortar uma vertente desgastada
de seu jeans preto.
— Apenas
coisas. Tipo de coisas que você-pede-e-recebe.
— E
Daniel? — Luce perguntou. — Qual é a história dele?
— Oh,
ela não desiste — Ariane riu, depois limpou a garganta. — Ninguém sabe de
verdade. Ele guarda bem firme sua misteriosa personalidade masculina. Pode ser
simplesmente o típico babaca de reformatório.
— Eu não
sou estranha a babacas — Luce disse, embora assim que as palavras saíram, ela
desejou poder pegá-las de volta.
Depois
do que aconteceu com Trevor – o que quer que tenha acontecido – ela era a
última pessoa que deveria julgar pelas aparências. Mas, mais do que isso, nas
raras vezes que ela fazia uma pequena referência àquela noite, o dossel preto
das sombras se deslocava e voltava para ela, como se ela estivesse de volta ao
lago.
Ela
olhou de volta para Daniel. Ele tirou seus óculos e os deslizou para dentro de
sua jaqueta, então, virou-se e olhou para ela.
Seu
olhar apanhou o dela, e Luce viu enquanto seus olhos alargaram-se e rapidamente
se estreitaram em um olhar surpreso. Quando o olhar de Daniel capturou o dela,
sua respiração ficou presa em sua garganta. Ela o reconhecia de algum lugar.
Mas ela iria se lembrar de conhecer alguém como ele. Ela iria se lembrar de se sentir
tão absolutamente assombrada quanto se sentia agora.
Ela
percebeu que eles ainda estavam com os olhos presos quando ele relampejou um
sorriso para ela. Um jato de calor foi atirado nela e ela teve que agarrar-se
ao banco para se apoiar. Ela sentiu os lábios dela derreteram-se num sorriso de
volta para ele, mas então ele levantou sua mão no ar.
E
mostrou-lhe o dedo do meio.
Luce
arfou e deixou seu olhar cair.
— O quê?
— Ariane perguntou, alheia ao que havia acontecido. — Esquece. Nós não temos
tempo. Eu sinto o sinal.
O sinal
tocou na deixa, e todo o corpo estudantil começou o lento arrastar de pés para
dentro do prédio. Ariane estava segurando a mão de Luce e declamando
orientações sobre onde se encontrar com ela depois e quando. Mas Luce
continuava cambaleando por aquele perfeito estranho ter-lhe mostrado o dedo do
meio. Seu delírio momentâneo sobre Daniel sumiu. Qual era o problema daquele
cara?
Logo antes
dela entrar em sua primeira aula, ela ousou olhar para trás. Seu rosto estava
vazio, mas não havia dúvida – ele a estava observando ir embora.